Todo aquele sangue escorrendo-lhe das mãos, invadindo-lhe o olhar branco de agonia. Para sempre cravadas na memória aquelas imagens. Um rio de sangue naquele pátio feito de pedras cansadas, tantas as mortes, tantos os passos de gente aflita e faminta.
Naquele dia, levantara-se cedo, às quatro e meia, preparara a ração para os animais, fizera a sua sopa matinal e rezara o terço. E sentia-se, como sempre se sentira desde miúdo, um homem afortunado. Nada lhe faltava: tinha casa, família, saúde e pão. A casa era modesta, de paredes caiadas e inclinadas, conquistadas com as mãos de seu avô Feliciano. A mulher pouco afetiva e de trato exigente. Os filhos já criados, cada um na sua vida lá por Lisboa, sem tempo para visitar o velho pai. Não que fosse muito velho, mas tinha esse aspeto, de quem passou a vida trabalhando ao sol, ao frio e esgaravatando a terra. Uma vida difícil, mas uma vida honrada. Aliás, honra era a sua palavra preferida. Podiam-lhe tirar tudo, mas que não lhe tirassem a honra! Até o pão lhe podia faltar, não se importaria de comer sopa azeda e fruta quase podre para o resto dos seus dias, desde que não lhe faltasse a honra…!
Levantara-se cedo, como sempre o fizera desde que se conhecera por gente. Pés descalços no chão de terra batita, pés que são barómetro de como a Terra pulsa. Não estava, portanto, muito frio. Januário Henrique vestia apenas uma camisa já muito comida pela traça e pelo ritmo do esforço e suor. Pouco depois a mulher, Maria de Fátima, levanta-se alvoroçada. Afinal é véspera dos filhos os virem visitar. E muito têm que preparar para a matança do porco, para além da sopa, dos doces e das restantes tarefas. Queria também estar lavadinha para os filhos e hoje, depois de tudo feito, tomaria o seu merecido banho semanal.
Apesar de todos os esforços do marido por satisfazer cada capricho da mulher, Maria de Fátima nunca amou o marido. Casou-se por conveniência, os pais já não tinham como a sustentar e por isso apoiaram o casório. Nada nele lhe agradava, a forma como falava, o seu cheiro intenso, a forma como comia, até as suas tentativas em lhe agradar com pequenos gestos ridículos.
Januário habituara-se a viver de migalhas, de uma ou outra palavra simpática, de um ou outro gesto carinhoso. À noite, Maria de Fátima recusava-se a “servi-lo”, arranjando sempre desculpas para o evitar. Januário nem sabia como conseguiram ter cinco filhos. De qualquer forma, não se podia queixar, era fiel, trabalhadora, mulher de fé e sempre fora dedicada à família. Tinha teto e comida e uma família honrada. Tinha tudo o que um homem podia pedir.
O dia da matança chegou, os cinco filhos também. Trazem as esposas e os netos. Januário e Maria de Fátima não se contêm, tamanha é a excitação, abraçando-os e contando todas as novidades da terra. O filho do Vítor morreu, canceroso. O Padre Teotónio apanhou sífilis e está acamado. Luísa das Dores não consegue sair de casa desde que o marido a abandonou.
A mesa está posta, repleta de autênticos manjares. Os convidados estão todos no pátio, praticamente metade da aldeia. Todos já com fome e na expectativa.
O porco guinchando no pátio. Cinco corpulentos homens à volta do animal, segurando-lhe o corpo sujo de lama. Apenas se ouvem guinchos do desespero do animal. Maria de Fátima, na casa da lenha, ofegando e gemendo, deserta de saudades daquele corpo amante e apaixonado. O animal no pátio prestes a ser sacrificado para satisfazer a fome de quase um rancho.
O filho mais velho levantando uma enorme faca e o porco guinchando. Januário, na casa da lenha, depois de apanhar os amantes no coito, enterrando-lhes repetidamente a foice. A lenha que cai por cima dos corpos e ele ali, em estado de choque.
É janeiro, mas não faz frio. O sangue corre pelo pátio. A sopa arrefece no fogão apagado. Tanta sobremesa. A véspera inteira a fazer arroz doce, leite creme, pudim, farófias, bolo de iogurte, azevias e rabanadas. A véspera inteira a sonhar.
Januário em estado de choque, todo aquele sangue escorrendo-lhe das mãos. O silêncio que agora se ouvia. O porco sossegou, rendeu-se às investidas da morte e partiu para a “quinta dos calados”, como diria o seu avô Feliciano. Seria depois cortado e o seu sangue escorrido. Ali deitados, os amantes já não incomodavam Januário. Talvez por isso se tivesse posto a cantar e a preparar os corpos como quem prepara um pitéu. E depois de cortados, Januário cobre-os com lenha e rega-os com gasolina.
Sangue e mais sangue, vísceras a arder. Um cheiro fétido de carne em combustão. Para Januário, no pátio é que se cometera o verdadeiro crime. Na casa da lenha, apenas justiça e defesa da honra. Ao menos o porco se iria comer.
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