top of page

CORAÇÃO DE PÁSSARO

Foto do escritor: Marta RomlMarta Roml

Atualizado: 23 de jun. de 2024

Parado, sem ouvir mais nada. Acumulando saliva na boca amarga. Também deixara de ver. Quer dizer, via sem ver. À sua frente observava um homem quase careca, de estetoscópio ao peito, com uma bata demasiado branca. Para além dessa visão, outra se lhe afigurava aos olhos: um precipício, como se tivesse sido atirado para o mar revolto e gelado. Do seu corpo moribundo sentia como que um outro corpo a escapar-lhe do peito. Como? Não percebo. Nem sabia que isso era possível. O coração, o meu coração tem o quê? Cancro – a palavra maldita, a palavra que pesa chumbo apenas ao ser pronunciada em voz alta. César estava destinado a grandes feitos, dissera-lhe a mãe em criança. César era nome de imperador, nome de vencedor, de quem veio ao mundo para deixar a sua marca. Não podia ter cancro. Não podia, não era justo. Tinha apenas vinte e sete anos: ainda não se casara; ainda não dera aquela viagem ao mundo que tanto sonhara; não acabara de escrever o seu primeiro romance; não fizera body jumping; nunca gritara no deserto; ainda não andara nu no meio da floresta; não representara uma peça de Shakespeare; ainda não fizera sexo com uma desconhecida… Tanta coisa, tanta loucura por concretizar, tanta merda por cumprir… Tudo isto lhe passava pela mente enquanto sentia o seu corpo a ceder, perdendo forças e gravidade. Sentia-se a flutuar. O corpo pairando e a mente pasmando perante toda a sua vida. Não acredito. É isto a vida? É só isto? Cancro no coração?


Estava deitado no chão frio do gabinete médico. O corpo paralisado. Ouvia ao fundo vozes:

- Tensão oito/cinco. Temperatura trinta e seis e três. Oxigénio normal.

- César? César? Está-me a ouvir?

- Sabes o que comi ontem?

- Sushi?

- Já me deixei dessa cena depois da intoxicação. Peixe cru só depois de morto. Fui a um restaurante dos Himalaias. Fixe, bem fixe.

- Deixem-se disso. César?

- Ya! Come-se bem. O pão é sem fermento. E o arroz é cinco estrelas. Depois dou-te a morada.

- César? César? Está-me a ouvir?



Iria ser grande de qualquer maneira. Se não em vida, na peculiar morte. Por isso, Deus não lhe reservara um cancro vulgar. Não, César seria grande na morte, imperador de muita dor. Agora, estava acordado, deitado numa das camas da enfermaria. Iria ser operado de urgência. Tirar-lhe-iam o coração para fora da caixa torácica para lhe extrair toda a massa maligna. Um procedimento difícil, uma cirurgia delicadíssima. Poderia morrer ou ficar permanentemente afetado. Depois, teria que fazer quimioterapia. César decidira não telefonar a ninguém, decidira viver tudo sozinho. Se der merda, morro. Se não morrer, enfrento o resto da merda. Nada de telefonemas chorosos, nada de visitas compadecidas, mas sobretudo nada de penas e afins. César estava habituado a desenrascar-se sozinho e queria enfrentar a situação como tinha vindo ao mundo: . Que o deixassem sofrer com dignidade, sem testemunhas do seu calvário.


- César, tens que ficar de jejum para a cirurgia. Tínhamos um menu de degustação incrível… Vê lá o que tu estás a perder!

- Nem vou dormir a pensar nesse menu

- O teu telefone ainda não parou de tocar…. Tens miúda?

- Sou um pássaro. O meu coração é livre.

- Agora percebo porque ficaste assim…. Espertinho…. O teu coração é tão livre que te quer sair do peito, não é? Vá, não penses mais nisso. Podes-me tratar por Lina. Depois, dou-te o meu número de telefone. Mas, antes temos um date para te mudar o soro…


Depois da enfermeira sair do quarto, César fecha os olhos e tenta adormecer. Lembra-se de sua mãe, daqueles braços sempre abertos, das suas palavras ternas: “Vais ser grande meu amor, acredita na tua mãe. O teu coração é especial. Sonha alto, nunca deixes de sonhar. A vida é aquilo que tu fizeres dela. Não te limites às palavras dos outros. Ousa ser mais e melhor. Lembra-te: estás predestinado a grandes feitos! O teu coração é único! Nunca deixes de acreditar em ti… Nunca deixes de acreditar!” César, mais calmo, mais tranquilo, adormece tranquilo e entrega-se aos sonhos mais profundos.


De manhã, Lina entra no quarto para preparar o paciente para a cirurgia. Depois do que viu ficou sem chão: o corpo de César já sem vida e um enorme buraco no seu peito, no lugar do coração. Fica atónita, não sabe se há de gritar, se há de pedir ajuda. Mas, agora já nada se podia fazer, César já morrera. De repente, vê um pequeno corvo no quarto, à beira da janela, batendo metodicamente no vidro. Como entrara aquele pássaro ali? Rapidamente tudo compreende e, sem muito pensar, abre a janela.


39 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

A LISTA

BOA MORTE

Comments

Rated 0 out of 5 stars.
No ratings yet

Add a rating

Design by Marta Roml © 2025

bottom of page