Estava cansado, extremamente cansado. Viver representava ter que traduzir constantemente frases e gestos que lhe pareciam completamente desnecessários. Para quê dar dois beijos na cara quando as pessoas se reencontram? Para quê sorrisos dúbios, ironias, olhares de lado? Para quê palavras de duplo sentido? Para quê utilizar certos gestos sociais de agradecimento quando se podia simplesmente utilizar dinheiro como troca de favores? Gabriel não compreendia este mundo. Sentia-se um ser à parte, um extraterrestre, um ser diferente tentando compreender uma língua estranha, sem direito a tradutor. Passava os dias fechado no seu gabinete, à frente de um computador, decifrando códigos de programação e ataques cibernéticos. Dos computadores nunca se fartara, utilizavam a linguagem da lógica, tudo neles fazia sentido e não utilizavam meias verdades para expressar ideias, nem se inundavam de emoções descontroladas, nem choravam por coisas insignificantes, nem gritavam, nem tão pouco eram agressivos. Nos computadores tudo era programável, tudo se controlava. Através deles Gabriel podia chegar à perfeição, a sua única obsessão: criar um sistema infalível e em que tudo significasse uma só coisa.
Naquele dia entrara no seu restaurante chinês preferido. Os empregados já estavam habituados àquele comportamento estranho, sabiam que Gabriel não os iria cumprimentar. Detestava encarar as pessoas, olhá-las nos olhos, sentia que podiam roubar-lhe a alma… É que, às vezes, Gabriel imaginava-se vivendo num jogo de computador em que tudo era pontuado. Por isso, fazia planos e mais planos e a sua agenda era traçada ao mínimo pormenor. Para não falhar, sentava-se sempre à mesma mesa, na mesma cadeira e pedia sempre o mesmo prato: “Família Feliz”. Gostava sobremaneira da mistura de vegetais cozinhados ao vapor. Costumava devorar o prato nunca levantado os olhos. Não conseguia fazer duas coisas ao mesmo tempo: ou comia ou olhava, ou olhava ou falava, ou falava ou sentia. E sentir era coisa muito difícil de se tocar. O amor era afinal o quê? Um afeto, uma proximidade extrema, o coração descompassado… Não sabia, nunca soubera até ali. Sabia o que as freiras, no orfanato, lhe tinham dito: tens autismo, és especial, por isso te demos este nome, mas com o tempo vais perceber como se vive e o que cada coisa quer dizer e vais ter uma linda família feliz.
A Banana Pá Si estava deliciosa, pensava. Em nada mais meditava, concentrado que estava no sabor da fruta desfazendo-se na sua boca. Sem aviso e deixando-o boquiaberto, uma rapariga de franja curta e olhos delineados com eyeliner azul senta-se à sua frente: “Olá, o meu nome é Sílvia. Sou a tua nova colega. Vi-te há bocado pelos vidros do escritório. O que é que se come?”. Gabriel nem queria acreditar. O que é que isto queria dizer? Uma mulher sentar-se à sua mesa? Meter conversa consigo sem serem apresentados? Tudo era tão estranho… Não sabia o que dizer e balbuciou o nome da sobremesa. “Estou faminta! Tu és o Gabriel, certo? Deves ser cá um anjinho…” E riu-se descaradamente. Gabriel não compreendeu. Mas, pela primeira vez na vida olhava nos olhos de alguém sem receio de nada. Olhava-a profundamente, até ao fundo da alma. Por momentos, conseguira vislumbrar uma criança perdida no recreio, sendo pontapeada pelas colegas. Por momentos, conseguira ver uma miúda fechada no quarto, saltando em cima da cama, com a música aos altos berros, enquanto os pais discutem na sala. Sílvia tinha sardas, a sua cara era povoada de manchas de vários tamanhos, pequenas constelações de dias passados inconscientemente ao sol. Gabriel estava hipnotizado com as suas sardas. “Então não dizes nada? És estranho, não és?”. Ele ficou algum tempo em silêncio. Não conseguia falar e pensar e amar ao mesmo tempo. “Posso dizer que o tempo está bom. Não chove e faz sol. Posso dizer que gosto muito desta sobremesa. Posso dizer…” É interrompido pelo sorriso rasgado de Sílvia seguido de uma ligeira gargalhada. “Pronto, já percebi que estás nervoso. Sou assim tão intimidante? Deixa estar, podes não responder. Eu também estou. Costumo pôr este ar de quem domina o ambiente, mas neste momento estou a borrar-me de medo. Sou nova aqui, não conheço ninguém. E também sei que tenho um jeito alternativo de ser que pode não ser compreendido. As tatuagens, os piercings, os meus interesses… Percebes?”. Gabriel sabia bem o que Sílvia queria dizer. Afinal sempre se sentira como peixe fora de água. Pela primeira vez na vida alguém falara com ele de forma simples e direta. “Percebo, Sílvia. Tens mais de cem sardas na cara. Não que as tivesse contado a todas… Não consigo fazer duas coisas ao mesmo tempo.” Ela ficou em silêncio. Apetecia-lhe chorar. Pela primeira vez na vida alguém olhara para as suas sardas como quem descobre uma nova espécie de flores. Os dois ficam em silêncio, olhando-se nos olhos prolongadamente.
Gabriel não percebe o que se passa consigo. Já Sílvia percebe, mas desvia o olhar, pegando no menu para escolher o prato. “Então, o que sugeres para comer?”, pergunta-lhe, piscando-lhe o olho. Ele, com o coração a mil e com um sorriso nos lábios, sentindo-se inquieto e estranhamente confortável, diz, piscando também o olho: “Família Feliz?”.
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