Praticamente ninguém. Olhava de soslaio o pequeno povoado de casas, enquanto esperava que a água do café fervesse. Vivalma, apenas ele completamente desperto. Às cinco da manhã erguera-se da cama quente, pronto para contrariar o tempo. Palavras soltas ecoavam-lhe na cabeça: tempestades, fogos, inundações, Rússia, Médio Oriente, bestialização do homem, infantilização do animal, sexualização da criança, inversão da origem, tristeza de Deus, Cristo na cruz, pecados, pecados, pecados, o fim. Às cinco da manhã o mundo era mais perfeito. Ainda não fora poluído pelo barulho da humanidade, esse eco de consumismo e perversão. Um cão? Ouvira no outro dia que um miúdo entrara na escola com uma máscara de cão, afirmando identificar-se com esse animal. Sentia o fim próximo, esse fim tão temido - o tempo em que tudo é contrário à ordem. Aboliram a norma, transmutando a essência do ser. O que é ser normal hoje em dia? Também já não há lugar para a diferença, já que a diferença passou a ser massificada. Raio da comunicação social! Mainstream de informação corroída por interesses obscuros. Tudo conspurcado por agendas suspeitas. É essa elite mundial! O mal, o mal. Querem normalizar a própria besta. Era nisto que Jesus Maria pensava enquanto esperava que a água fervesse. Preferia o café feito ao lume, sabia-lhe a infância e tinha o gosto dos abraços da falecida avó Sara. Olhava para a janela absorto. Vivalma. Apenas uma rola penicando uma erva seca. A paisagem mostrava-lhe que o infinito é pousio para pensamentos profícuos. Haveria um dia de publicar um livro. Haveria de calcorrear todas as terras com as suas verdades. Talvez não houvesse tempo. Sentia no corpo o fim. Era uma vibração que antecedia uma intuição absurda. Tinha que fazer algo! Mas o quê? Era apenas um homem só, uma pobre criatura que vivia de forma humilde num povoado do Oeste de Portugal. Todavia o fim? O que fazer? Sim, estou de consciência tranquila, não tenho medo do julgamento final. Mas tenho que fazer algo pela humanidade! Tenho que avisar o mundo que a conversão ainda é possível. O arrependimento salvará as almas perdidas. O mal poderá ser reparado com o Amor de Deus.
A água ferveu. O pó de café pousou no fervedor. Jesus Maria verte lentamente o café numa chávena de porcelana antiga, do tempo da sua tetravó Madalena José. Claro que não a conhecera, mas é como se fossem suas as memórias da chegada da tetravó à Póvoa de Além. Chegara apenas com uma pequena mala, descalça e com descendência no bucho. Arranjara guarida na casa de um velho agricultor. Dizem que lhe fazia favores em troca de comida. A verdade, é que a protegia a ela e ao filho. Madalena José não era lá muito religiosa. Ia de tempos a tempos à missa, mas nunca se confessava. Dizia que só Deus a poderia absolver dos pecados, nenhum padre lhe levantaria a mão, nem para a abençoar. Era livre, rebelde e indomável. Jesus Maria não tinha vergonha dos seus antepassados. Sabia que era fruto de uma guerra espiritual que se travava há muito. Bebendo lentamente o café, levantava o olhar sobre a paisagem e continuava o seu solilóquio interior. O que fazer? Permitir que mentes distorcidas e indolentes dominem o mundo? Era o que sempre a sua mãe lhe dizia: “Não permitas que os bons se calem e permitam o mal dominar…”. Ouvia o vento a bater na janela. Sempre a esta hora. É ela. Sabe que não me vou calar.
Na Póvoa de Além, diziam que Madalena José fazia bruxaria. E que bastava um homem olhar-lhe nos olhos para ficar endemoniado. Diziam que se besuntava com o sangue menstrual e que escrevia cartas com os seus feitiços. Diziam que depois de morrer, o seu corpo apodrecera instantaneamente e que por esse facto se provara que era bruxa verdadeira. Diziam que o seu espírito vagueava pela povoação assombrando todos os homens casados. Diziam que a sua descendência estava marcada com o sinal da besta. Jesus Maria não acreditava em nada daquilo, pelo menos em vaticínios daqueles. Acreditava no poder de Deus, seu Senhor. E nunca vira nenhum sinal estranho no seu corpo. O vento batia na vidraça. Jesus acabava de beber o café.
Fazer algo. Sair de casa e caminhar. Caminhar, caminhando. Correr em direção ao mar. Anunciar o fim dos tempos. Por isso é que a máquina fora disseminada sobre a Terra, para perverter o homem. Não democratizam a cura do cancro…. Lá isso, não! Deixam a doença ser mercado de carne hipnotizada por valores decrépitos. E agora querem povoar Marte? Se não conseguem alcançar a paz na Terra… Não interessa, não interessa aos donos disto tudo! E eliminam todos os que se insurgem contra esta elite. A mim também me podem eliminar! Estás disposto a sacrificar-te pelo mundo, Jesus? Estás disposto a dar o teu sangue pela verdade? Correr, correr. Correr mais. O corpo suando. Jesus Maria José despe a camisa de flanela. Está frio àquela hora da manhã. Não importa. Aguentar pelo mundo. Despe as calças: agora nu - despido de todas as contradições. Lembra-se da sua tetravó. Tinha que a libertar… Já chegara à praia do Amanhã. Desce a encosta ofegante e avança pelo areal. O sol começa a espreitar. Jesus vê seu corpo iluminado, aproximando-se da água. Deixa-se ser invadido pela água gelada e começa a pregar.
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