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Foto do escritorMarta Roml

A LISTA

Atualizado: 9 de dez. de 2024

Noite cerrada. Fechada na carrinha blindada, sem ver onde está, retocando o batom gloss como quem come dióspiros da época. Desde cedo soubera para o que fora feita, como um escritor ou bailarino sabe - o seu corpo fora feito para dar prazer. Tudo isto aprendera num quarto escuro, nas traseiras da casa onde a mãe trabalhava. Abusada centenas de vezes. Primeiro pelo patrão da mãe, depois pelos diversos companheiros que a mãe fora arranjando... "Não faças barulho, Célia. Não digas nada à tua mãe, é o nosso segredo. A tua mãe é boa, mas gosto mais de ti!". Sempre carente de atenção, trocava carícias por gomas, barbies, peluches, maquilhagem com purpurinas, brinquedos de toda a variedade. Violada também. Disse que não, suplicou para que parassem. Não quiseram saber. Ninguém quis saber. Preferiu calar o crime, afinal era o melhor a fazer… Quem é que daria ouvidos a uma miúda preta? Quem é que a mandava, com aquela idade, andar sozinha à noite? Quem é que lhe dera aquele corpo provocador, lábios desenhados e preparados para desesperar o espírito de qualquer um? Sim, aprendera a calar, mas também a tirar partido do que o Criador lhe dera, usando o corpo com frieza e distanciamento – era apenas meio para atingir fins. Oferecia sexo como fruta: laranja da época apanhada há pouco. E tratava da vagina com o esmero exigido a uma boa profissional do meio: lavagens locais várias vezes ao dia; lubrificante - sempre de morango; pelos rapados; muito perfumada; ginasticada em dias de folga. O melhor daquela vida é que fizera da fraqueza a sua fortaleza, sendo ela agora a sustentar mãe e irmãos. Andava pelas ruas sem medo. Tudo perdera no quarto escuro de uma infância perdida. Tudo perdera na noite em que fora obrigada a trocar a inocência pela vida. Mas, escolheu a vida, escolheu sempre a vida.


Nessa noite cerrada, dentro da carrinha que apanhara na Conde Redondo, Célia, depois de retocar a maquilhagem e ajeitar as cuecas que lhe saltavam das leggings transparentes, abre finalmente a porta. Ainda não sabe bem onde está, parece mato, talvez uma serra, mas ouve o mar ao fundo. Estará em perigo? Ao fundo vê luzes. Do homem que a trouxe, não prestou grande atenção, estava de óculos escuros e boné. Entretanto, a carrinha desaparece e com ela o homem que a levara até lá. Célia está sozinha num sítio que desconhece. Abre o telemóvel e liga os dados móveis para saber a localização. Serra da Arrábida? Mas porque é que me deixaram no meio da Serra da Arrábida? Tenta manter a calma. Começa a caminhar pelo trilho que, entretanto, encontrou. Não percebe o que lhe está a acontecer. Se calhar o fulano queria matar-me e arrependeu-se? Há cada tarado que encontro! Ao longe, avista um edifício antigo… Está muito escuro, mas através do telemóvel, Célia percebe que se trata de um convento. Onde fui eu parar? Eu num convento? E começa a rir-se descontroladamente. Quando está nervosa costuma rir-se.



Noite cerrada. Célia dá a volta ao convento. Olha pelas colinas e ainda consegue observar as celas onde ermitas de outros tempos se isolavam do mundo e meditavam. Uma puta num convento a imaginar como seria a vida de um ermita! E ri-se ainda mais. Continuando a caminhar, vai dar a uma pequena clareira. Começa, então, a ver uma luz intermitente. Ouve música ao fundo, música erudita. Célia, avança - a curiosidade sempre fora a sua perdição. Vê um grupo de pessoas de máscara e capa. Do outro lado, uma enorme tenda vermelha. Não sabe se é melhor fugir. Será que tudo fora combinado? Um dos mascarados pede-lhe o telemóvel. Célia, atónita e sem saber como reagir, entrega o telemóvel. À entrada da tenda, outras mulheres e alguns rapazes estão sem máscara. Caras lívidas, corpos apreensivos. O que seria tudo aquilo?


A música está cada vez mais alta. O grupo de mascarados entra na tenda. As luzes intensificam o ambiente de mistério. Um homem, vestido de branco, lê uma lista comprida numa língua que Célia desconhece. Parece italiano, mas não tem a certeza. “Terra, Ignis, Aqua, Glacies, Aer, omni, maximus, dorise, commonio. Accerso alius sententia ut mihi, phasmatis of interregnum ego dico, solvo meus mens mei, ego dico phasmatis auditore meus placitum meus mens quod iacio. Sacrificium Satanae. Immolatus: Célia, Vanessa, Dora, Paulo, Soraia, Telma, Caio, Igor, Iolanda…”. E continua a ler a lista de nomes. Depois, mandam-nos entrar na tenda. Célia depara-se com o mesmo grupo de mascarados, em círculo, agora completamente nus. No chão, um pentagrama; ao centro, um altar. Célia começa a recuar, assustada. Recuando cada vez mais, sentindo-se no quarto escuro da infância - indefesa, perdida, a ter novamente que calar.


Noite cerrada lá fora. As luzes denunciando algo proibido. A música harmoniosa, contrariando o que se passaria lá dentro. Um grito. Célia não se calara desta vez. Não queria saber se era puta, se era preta, se era mulher. Outro grito. E outro. E mais outro. Aquilo não. Quando se acorda uma fera adormecida, ela ganha a força de um continente inteiro. E África estava agora na sua voz. No seu corpo também. Afasta o grupo de mascarados, batendo com o pé no chão, como se estivesse a afastar animais. Sai da tenda aos gritos e começa a fugir. Foge daquele encontro macabro, do que poderia ter acontecido, da dor, da morte, do crime. Foge da noite cerrada, do quarto escuro da infância. Foge dela própria.


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