O tempo demorava a passar, sempre demorara a passar desde que regressara da guerra. Por isso acelerava sem parar. No assento de trás levava o filho de cinco anos. A sorte protege os audazes, pensava, até na estrada da morte. Aqueles olhos perturbavam qualquer um: salientes como duas luas cheias; já viram sangue e entranhas apanhadas no mato cerrado; duas lanternas procurando fatalidade. O filho sem noção do perigo, brincando com um volante pequeno: “Olha, papá, olha como este bicho é potente!” - a cria copiando o macho alfa, ignorando a fêmea que quase sufocava. Para ela o tempo também demorava a passar. O coração acelerava a cada ultrapassagem, quase ferindo as mãos de tanto as apertar. “Boa Morte, rico sobrenome foste tu arranjar…”, dizia a mulher em surdina. “…a minha mãe é que tinha razão, os comandos são todos doidos!”. Mas, apaixonara-se precisamente por essa loucura – as explosões eminentes, a sensação de estar sempre à beira do precipício, esse fogo que a fazia querer estar mais apegada à vida. No lugar do pendura, Lurdes da Paz Boa Morte rezava incessantemente: Maria Auxílio dos Cristãos rogai por nós. Anjo da Guarda minha companhia guardai a minha alma de noite e de dia. Que os caminhos sejam paz, os caminhantes amor, Nossa Senhora nos guie em nome do Senhor. Incessantemente rezava até chegar ao destino, até sentir que estava em local protegido. Desse medo Vítor parece que se alimentava, gostava de sentir que tinha algo sob o seu controlo. Aqueles dois seres, praticamente indefesos. Se o volante guinasse para a direita, talvez morressem todos. Era essa sensação que lhe dava um prazer quase sexual. Como quando empunhava uma Heckler & Koch HK416. “Trá-trá-trá-trá! Papá, papá, olha a minha metralhadora!”.
Afonso era um tipo muito rigoroso, não admitia atrasos. Foi esse rigor que fez com que o seu negócio prosperasse. Não havia Agência Funerária melhor que a sua! Sempre que alguém falecia na pequena vila, os familiares recorriam aos serviços de Boa Morte. E dava graças pelo sobrenome que o ajudara no sucesso da funerária. Mas, atrasos não tolerava! Nem ao padre na altura da missa, quanto mais ao filho! Horas são horas! Nem um minuto a mais, nem um minuto a menos. Todos na vila conheciam essa sua obsessão pelo tempo. Talvez por lidar tanto com cadáveres: uma hora a mais pode ditar uma cor menos viçosa no morto - “E todos querem estar bonitos para entrar no derradeiro lar!”, costumava dizer. Com fiel dedicação ao ofício, maquilhava os rostos dos seus mortos. E limpava a carrinha funerária, perfumando-a metodicamente. O relógio já marcava 13h10. Sempre atrasados… Nem ao almoço do meu aniversário são pontuais! Aquele filho preocupava-o muito, sempre a desafiar os limites, sempre a pôr a sua vida em risco. Afonso impaciente, esperando Vítor e sua família, caminhava no pátio à frente da moradia. Arrependera-se até hoje do dia em que permitira ao filho ingressar no curso de comandos.

Lurdes ia-se enterrando cada vez mais no assento. As mãos suadas escorregavam e deixavam-na sem nada para se amparar. E se o carro da frente não abranda? E se o do lado acelera? Vamos bater, vamos bater! É melhor fechar os olhos. Morrer assim é Boa Morte? Raio de sobrenome! Tudo lhe passava pela cabeça. E se lhe pedisse para ter mais cuidado, Vítor acelerava mais. Maldizia o dia que se tinha apaixonado por ele. Maldizia o dia em que o seu pai não lhe deixara tirar a carta. De qualquer forma, ganhara terror à condução. Tinha que aguentar, pelo filho aguentava tudo. Vítor acelerava cada vez mais, cortando as curvas como se estivesse num rali. O pequeno Salvador suplicava, inconsciente: “Mais depressa, papá, mais depressa!”. Lurdes calada, rezando orações já gastas e inócuas. Nada o demovia daquela urgência. Para além disso, já estavam atrasados.
- Gostas, Salvador? Um dia vais ser como eu! Brrrr… Trá-trá-trá!
- Não ponhas essas ideias no rapaz, ele ainda é muito novo!
- Nunca te esqueças, Salvador: “A sorte protege os audazes!”
- Estamos quase a chegar, papá? Brrrr… Trá-trá-trá!
Como a vida tinha passado tão depressa. Ainda ontem o velho Afonso casara com Eulália. Ainda ontem tinha tido um rapaz grande e bochechudo. E tinha-se feito à vida, fazendo da morte o seu negócio. Estava cansado de esperar. Esperar pelo filho, pela mulher que viesse da missa. Esperar pela morte dos outros. Não queria esperar mais. Permaneceria sentado no banco em frente à casa. Deixar-se-ia invadir pela calmaria da brisa quente. Nada melhor que deixar de esperar. Absorver a totalidade do tempo. Baixar a cabeça, adormecer finalmente. Estar em paz. Tudo fora feito. Estar em paz. Respirar lentamente. Fechar os olhos. Deixar-se invadir por ela – a morte sempre fora a sua melhor companheira. Estar em paz. O coração batendo cada vez mais fraco. Ela vinha para o levar. Tudo fora feito.
- Vamos ver o avô, Salvador! Ele faz setenta e dois anos.
- Brrrrr... Não gosto do avô! Ele cheira mal…
- Não digas isso, amor. O teu pai fica triste…
Vítor abranda o carro até o encostar na berma da estrada. Fica em silêncio. Depois, virando-se para o filho, diz-lhe com muita calma:
- Sabes uma coisa? O teu avô está velho e não vai durar muito mais tempo. É um grande homem! Gostavas de ser como eu? Gostavas de ser como eu? Dar tiros e acelerar nas curvas? Sê antes como ele e honra o teu sobrenome!
Não era hábito Vítor emocionar-se. Porém, vendo a face do filho assustada, deixa correr lágrimas de seus olhos verde-água. Sai do carro, começando a caminhar sozinho. Está também farto de fazer fintas ao destino. Apenas trezentos metros o separam da casa de infância. Olha para o banco de jardim onde repousa o pai - cabeça e corpo tombados como se estivesse apenas a dormir. Naquele momento, Vítor sabe, no seu coração, que a vida presenteara o velho patriarca com uma Boa Morte.
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