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A MUSA PERFEITA

Foto do escritor: Marta RomlMarta Roml

Atualizado: 14 de abr. de 2023


Não havia absolutamente nada que o desconcentrasse. Devorava as páginas do seu livro como quem devora uma bola de Berlim. E mais nada existia, apenas a sua leitura. Das pessoas que entravam no café, daqueles que faziam barulho com conversas supérfluas, David nem levantava o olhar, apenas lia. O mundo podia acabar ali que ele não notaria.

A certa altura, David sente uma mão sobre o seu ombro esquerdo e interrompe a sua leitura. Levanta o olhar para ver de quem se trata. Uma mulher por volta dos seus trinta anos afigura-se-lhe. Aquela cara não lhe é estranha, mas não consegue identificar ao certo. “Mara, o meu nome é Mara. Não te lembras de mim?”. Mara, Mara, Mara! Como estava ela, a sua paixão do secundário. Magra, muito magra, era só pele e osso. A cara cheia de crateras, os olhos avermelhados, as unhas compridas e muito sujas. David perguntava-se como Mara chegara a esse ponto, era um desconsolo vê-la assim. Trazia uma criança de dois anos ao colo. Provavelmente, seu filho. A criança também estava demasiado magra.


Mara interrompe os pensamentos de David: “Já te lembraste de mim… Então, rapaz como é que estás? O que tens feito? Depois do secundário nunca mais te vi… Mas, estás igual!” David diz-lhe que depois do secundário foi para a faculdade, tirou Literatura. Os livros sempre foram a sua grande paixão. Os livros e Mara. Vem-lhe à memória as cartas de amor que lhe enviara, e os seus primeiros poemas escritos sob o fogo da paixão. Ainda estava perplexo com o aspeto de Mara, não queria acreditar que ela estivesse tão acabada. Os olhos, principalmente os olhos estavam diferentes, perderam o brilho e tornaram-se escuros.


David não se casara, mas gostava da sua solidão, tirava partido de toda a liberdade de solteiro. Não era mulherengo, mas tinha muitas amigas com quem por vezes passava a noite. Elas sabiam que David não queria mais do que passar um bom bocado, e não exigiam nada dele. Dedicava-se inteiramente à sua profissão, como professor universitário.


Mara, senta-se à mesa com o menino nos braços. Não tinha ido para a faculdade, começara a trabalhar por necessidade, as coisas em casa não corriam bem e precisava de contribuir com algum dinheiro. Essa fora uma das suas grandes desilusões, queria ter sido enfermeira. Depois, casou-se porque ficara grávida: “Já tenho um filho de doze anos! É grande o moço! E muito esperto. Este aqui, é do meu atual companheiro…”. Divorciara-se cedo e pouco tempo depois conhecera o seu companheiro.





“A vida foi madrasta comigo, David… Tenho sofrido muito e sabe Deus como tenho sobrevivido. Depois, não tenho tido sorte com os homens. O primeiro batia-me, tive que fugir de casa com o meu filho. Este segundo… Este segundo…. É a droga, sabes. E com as desilusões da vida também me deixei envolver na merda do fumo e do cavalo. Agora, estou na metadona, mas é difícil. Não tenho vontade de fazer nada.”


David, nem quer acreditar que a sua musa de adolescência estivesse tão mal. Ela era tão linda, tão perfeita. E agora, agora estava um caco. Até os seus dentes, para além de amarelos, já não tinha molares. David sentia-se cada vez mais desconfortável, não queria que aquela imagem estivesse a pairar na sua mente quando precisasse de escrever o seu romance.


Mara, sem que David lhe perguntasse, continua a contar a sua vida. Que agora estava a fazer um tratamento, a tomar a vacina para a Hepatite C. Vivia da venda de droga. Dava para sobreviver, não era muito, mas tinha alguns clientes fiéis.


Entretanto, David começa a sentir-se cada vez mais incomodado, ao ponto de sentir um bolo no estômago. Sentia-se agoniado com toda aquela situação, não queria acreditar no destino da sua Mara. O bolo começava a subir pelo esófago, e sentia suores frios.

Até que David, abrindo a carteira, põe cem euros em cima da mesa. Pede desculpas a Mara e sai.


David corre até chegar a casa. Entra na sua casa de banho de mármore, ajoelha-se e vomita na sanita. Vomita toda a sujidade de Mara, vomita o tempo que perdera a sonhar com ela, vomita a realidade. Deitado no chão, chora por Mara, mas principalmente por si – a sua fonte de inspiração estava, agora, manchada para sempre.

 
 
 

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