Andando perdida pela rua. Engolindo lágrimas. Desesperando. Não conseguiria viver sem B. Para ela, B. era a sua vida, a sua alegria, a razão pela qual de manhã erguia o corpo obeso da cama. Faria tudo por ele – pagaria cirurgias, tratamentos, fisioterapia, alimentação, tudo. Descia pela calçada já quase sem forças. O médico aguardava-a na clínica com o diagnóstico final. Como a merda de um cancro nos lixa a vida. Agora restava saber em que estágio a doença estava e se era operável. As lágrimas iam descendo pela face salpicada de sardas. Às vezes era melhor nem ter nascido, pensava Catarina. Para quê? Para sofrer com a perda de outros? Preferiria não existir. Ou ser partícula no universo, sem consciência da sua condição. Em Deus não acreditava. Para quê? Para dar sentido a uma existência sem qualquer sentido? Nascemos, vivemos, morremos, ponto final. Ponto final.
Nada mais.
“Nada mais quero, ouviste? Já sofro há muitos anos. Só quero descansar.”, dizia-lhe S. ao ouvido. Elvira estava habituada a estes desabafos. Trabalhava há mais de quinze anos naquela casa e todos os dias eram os mesmos pedidos de sempre: que o ajudasse a morrer, que acabasse com aquele sofrimento, que aquilo não era vida para ninguém. Elvira era uma mulher grande, mas proporcionada. Cabo-verdiana alegre e por volta dos seus cinquenta anos. Entrava no quarto para lhe fazer a higiene matinal - um banho à cão na cama articulada. Mudava-lhe a fralda pesada de urina, penteava-o e, gingando o corpo moreno, dava-lhe o pequeno-almoço pela sonda. Gostava do que fazia, sabia que aqueles gestos tornavam a vida de S. menos pesada.
“Não, não, não! Não, meus irmãos. Não podemos pôr e dispor da vida humana.”, pregava Padre Nelson elevando o tom de voz e agitando as mãos. Olhava para os crentes, agora em silêncio, deixando todos em suspenso. E continuava: “A vida não é nossa, é um dom de Deus! Ele ofereceu-nos esse dom como o seu presente mais precioso. Fez isso porque nos ama. E ele ama-nos tanto, meus irmãos! Tanto que se fez homem e deixou-se cruxificar por nós. Para nos salvar dos nossos pecados. Pecados que são erros. O erro humano. Somos seres que naturalmente erram. Só Deus é perfeito! Por isso também sofremos. Será para nos purificamos? Para nos assemelharmos mais a Ele?”

O rosto de Catarina vermelho, inchado e apreensivo, aguardando as palavras do médico. “Ele terá pouco tempo de vida. Não sei se um mês, se um ano. Também não sei se sofrerá muito. Lamento. O que podemos fazer é dar-lhe medicação que lhe atenuará as dores. Mas gradualmente deixará de conseguir andar. Lamento.” Catarina nada diz, fica paralisada. Olha para B. ao longe, na maca, e desmaia.
“O senhor S. não diga disparates! Agora quer lá morrer!!! Ainda tem a sua filha, não tem? A menina Catarina gosta muito de si. Eu sei que já está paralisado há muitos anos. A doença é tramada, não é?”, dizia-lhe Elvira. S. apenas mexia o rosto, e já com alguma dificuldade. Em quinze anos, a esclerose lateral amiotrófica tinha-lhe ceifado todos os pequenos prazeres, toda a esperança na vida. Só queria morrer. Ponto final.
Nada mais.
Nada mais, nada menos, em plena homilia o telemóvel toca. Nelson, padre Nelson não sabe o que fazer. Tira o telemóvel do bolso. Deixa-o tocar e olha vitrificado para o écran do aparelho. É ela! Há tantos anos que não lhe telefona. Pede desculpa e sai da igreja a correr.
Agora Catarina está no mesmo gabinete que B. Respira lentamente e vê tudo turvo. Lembra-se do diagnóstico. Lembra-se de ter perdido os sentidos. Olha para o seu amado B., fazendo-lhe festas e beijando-o: “Quem é o meu mais que tudo, quem é? Quem é que quando chegar a casa vai comer presunto? E ração da mais cara? E muitas, muitas festas? Quem é o cão mais lindo do mundo?”
Padre Nelson entra na enfermaria. Vê uma mulher esquelética e de tez amarela, os olhos esbugalhados e os braços negros de tanta picadela de seringas.
- Obrigada por teres vindo, Nelson. Estou a morrer, sabes. Só queria que soubesses que te perdoo. Não me deste netos, sacaninha! Não concordo com metade das coisas que escreves, mas leio os teus artigos no jornal. Parabéns. Tornaste-te um bom homem. Não te vou pedir que me dês a santa unção, não acredito nessa merda. Mas, podias-me dar um cigarrinho, filho.
- Mãe, minha mãe. Sossegue. Está tudo bem. Tornei-me no homem que Deus quis. E também tenho orgulho em si. Deu-me a vida, cuidou de mim como pôde, não foi?
- A vida, a vida… Não me arrependo de nada, sabes. Vivia-a até ao tutano! Vivi tudo o que pude, sem olhar para trás. Mas, o melhor que fiz foste tu, foste a minha melhor obra.
Catarina entra em casa com B. ao colo. Pousa-o na sua cama. Prepara-lhe a tijela com a comida. Percorre o escuro corredor de soalho de madeira antiga até ao quarto de S. Fica à entrada observando o pai, nas suas cogitações interiores. Pensa que qualquer dia ficaria sozinha no universo e tudo deixaria de fazer sentido. Não queria sofrer, mas talvez acedesse ao pedido do pai e o ajudasse a morrer.
Nelson observa com ternura a mulher que o trouxe ao mundo. Admira-a profundamente: a sua determinação, a sua coerência, a forma como enfrenta o mundo pelos seus ideais.
- Há muita coisa que fiz mal, filho. Mas foram os tempos, a revolução, o partido. Escreves muita coisa que não concordo, muita coisa… Mas, ajudarem-me a morrer? Com uma injeçãozinha? Era o que mais faltava! Nunca me deram nada e agora iam-me ajudar… A troco de quê? Querem fazer uma razia aos mais fracos… Eu quero sentir que estou a morrer! Quero sentir tudo até ao fim! É sinal de que estou viva!!!
- Mãe?
- Sim, Nelson.
- Amo-a.
Muito interessante como aborda a separação e despedida, de pessoas e animais, no seu partir da vida, pela idade ou por doença...