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Foto do escritorMarta Roml

SUPREMACIA

“Foda-se, esqueci-me outra vez da merda da roupa. Desta vez não vou levantá-la. Ele que faça o que quiser com a merda das camisas. Que as enfie no cu do patrão. Estou farta! Sempre a chegar às tantas, sempre com as mesmas desculpas da treta. É o trabalho, é o trabalho. E eu? E os meus desejos? Depois queixa-se: que estou gorda, que me visto mal, que só digo disparates, que o meu comportamento é irracional… Mas como fazer sentido neste mundo? Estamos cada vez piores, cada vez piores. Depois da pandemia, agrilhoados em casa, agoniando devagar, temos agora a guerra, a violência entrando constantemente em nossas casas… Eu sei, eu sei, tudo é política, tudo é guerra, nada mudou desde os primórdios… Foda-se, esqueci-me outra vez de comprar manteiga!”


- Estou sem forças, sabe. E não sei o que fazer. É muita pressão no trabalho. E a minha vida simplesmente está estagnada. Nada acontece. Casa-trabalho-trabalho-casa-casa- trabalho-trabalho-casa… E tudo se repete infinitamente. Uma semana de férias no Algarve. Uma semana na casa dos meus pais, uma na casa dos meus sogros. A seguir tudo volta ao mesmo. Quando chego a casa, depois do trabalho, não me apetece fazer nada, nem sequer falar. Afundo no sofá e consumo programas de televisão sem utilidade absolutamente nenhuma. Faço tudo para não pensar na minha vida. E não sei porque vim parar aqui, não sei porque estou a falar disto quando devia estar a fazer outra coisa, não é? Claro que estar aqui é mau sinal…


“Puta que pariu para todas as vezes que lhe preparei o suminho de laranja matinal. Puta que pariu para todas as vezes que me deu a entender que não era elegante. Puta que pariu para as vezes que não percebeu que estou estafada, saturada de ser esta mulher que trabalha e arruma e limpa e se desdobra em esposa e amante. Não quero ser mais isto! E não quero ter de ter filhos. Não quero ser a progenitora e supermulher que ele idealiza para mim. Foda-se, esqueci-me do carregador no trabalho! Espero que a bateria chegue até amanhã. Agora vivemos todos à custa de baterias, entre os tempos em que recarregamos os aparelhos. As cabeças todas fodidas para consumirmos mais merdas. Qualquer dia meto-me num avião e vou para aquela ilha nas Filipinas sem internet…”



- É claro que diz demasiados palavrões, é claro que podia vestir-se de forma mais feminina, podia ser mais delicada e sensível. Mas eu sempre gostei dela assim, desde os tempos da faculdade. O problema sou eu, compreende? O problema é que eu mudei. Já não sou o mesmo rapaz tímido e indeciso. Agora sou apenas um homem frustrado, infeliz e com vontade de desaparecer e de lixar tudo à sua volta. Deve pensar que estou louco… Mas a verdade é que tudo para mim perdeu o sentido. Às vezes vou sozinho para a serra e ponho-me a observar uns tipos de parapente. Invejo-os. Daria tudo para ser como esses tipos. Não ter nada a perder, nada que me segurasse à vida. Ser dono de mim e capaz de tudo.


“A merda da casa está um nojo. Claro! Se eu não a limpo, ela não se limpa sozinha. Mas, hoje não faço nada. Hoje não mexo uma palha. Vou fazer como ele: esticar a perna no sofá e fazer zapping. Se a mãe dele ligar, nem atendo. Que o telefone toque e ela morra de preocupação. Onde está o meu menino? Onde estará ele? Terá comido bem? Estará muito cansadinho? Coitadinho…! Coitadinha de mim que me levanto todos os dias às seis da manhã e tenho que fazer tudo em casa. Foda-se, esqueci-me de pagar a eletricidade…”


- Conhecemo-nos há quinze anos e estamos casados há sete. Já não a desejo. Na verdade, já não desejo ninguém. E não consigo falar com ela. Começa a reclamar comigo, que não faço nada em casa e que as mulheres agora não estão para isto. E os homens? O que nos resta a nós? Não sei. Recorrer a este tipo de serviços, talvez seja esse o nosso destino. Esperar que alguém nos compreenda. Ganhar finalmente coragem e viver sem medo. Tenho medo dela, sabe? Tenho medo das mulheres, em geral. Da vossa supremacia.

- Desculpe, não percebo muita bem o português… O que ser supremacia?

- Disparate! Não ligue… Só estou a dizer disparates…

- Não estar nada, meu bem… Este tempo ser o seu tempo… Podemos fazer tudo o que querer… Podemos só estar deitadinhos, sem fazer sexo…

- Desculpe… Tenho que ir embora. Fique com o troco. Esqueci-me que hoje eu e a minha mulher fazemos anos de casamento…


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