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CARMA

Foto do escritor: Marta RomlMarta Roml

Olga tira uma revista da mesinha de apoio da sala de espera. Começa a ler os cabeçalhos, mas rapidamente desiste da leitura, não está com cabeça para isso. Aliás, não está com cabeça para absolutamente nada. Dedica-se, então, a analisar as outras pessoas que, como ela, esperam a vez de serem atendidas.


Ao que chegara ela, nem queria acreditar. Mas, tudo lhe corria mal, não havia nenhuma área da sua vida que pudesse correr bem. E tudo no mesmo ano: a morte da mãe, o divórcio, o desemprego. Só podia ser algum encosto, pensava Olga, alguma alma penada. Estava desesperada, ir à bruxa pareceu-lhe a forma mais certa de lutar contra os seus problemas.


Uma mulher morena e magra abre a porta do gabinete e chama-a: “É a sua vez, Olga Ribeiro. Pode entrar que a Madame já vem atendê-la…” Olga entra no gabinete que está na penumbra. Sente o cheiro forte do incenso. Sempre acreditou na vida para além da morte e em fantasmas, mas nunca se imaginou a ir a uma bruxa. Mas, Olga sabia que o que estava a acontecer na sua vida não era normal.


À noite, quando estava na cama, sentia uns barulhos estranhos, parecia que alguém se estava a arrastar pelo corredor. Olga, abria a luz, e os barulhos paravam. Havia noites em que passava o tempo nisto, e acabava por adormecer com a luz aberta… Também parecia que o seu corpo tinha uma influência nas máquinas, de modo que lhe dava a impressão que estas paravam mal ela se aproximava. Na rua, os cães ladravam-lhe, por pouco não a mordiam. Tinha que ser algo do outro mundo, alguém a persegui-la. Viu o anúncio da Madame Sylvie e marcou sessão com ela.



Já tinha tentado tudo, até já tinha ido ao psiquiatra. Desistiu, pois este, para além de lhe receitar uma medicação fortíssima, queria convencê-la que aquilo era tudo da sua cabeça. E Olga sabia que não era. Ainda confiava nos seus sentidos, sabia que o cheiro a podre que sentia mal falava com o filho era real. E só esperava que nada de mal lhe acontecesse, não iria suportar mais nenhum desgosto.


Olga, senta-se. Uma mulher gordinha, de olhos grandes e pele reluzente, senta-se à sua frente. Pega nas mãos de Olga e diz-lhe: “A senhora tem um carma muito pesado, precisa de fazer muitas limpezas para não atrair mais pesos na sua vida.” Olga, sente um arrepio por todo o corpo e, não sabendo porquê, lembra-se da sua mãe. Madame Sylvie levanta-se e vai buscar um saco de sal púrpura da sua estante de mezinhas: “Tome todos os dias um longo banho de imersão com este sal. Mas, atenção, não é para mergulhar a cabeça…”. Depois, pede-lhe para analisar os seus olhos com uma lâmpada forte. Diz-lhe que no futuro poderia ter uma grande perda, se não fizesse uma mudança na sua vida. Olga volta a estremecer e pensa no seu filho.


Madame Sylvie começa a ter convulsões, e Olga arregala os olhos, assustada. “Não te assustes, minha filha. Agradeço-te tudo o que fizeste por mim no passado. Foi difícil, mas eu agora estou melhor. Tudo aqui é mais sereno, mais livre. Tu, um dia, também vais gostar…” Olga continua assustada, mas percebe que só pode ser a mãe… “Estamos perdoadas, mãe?”, pergunta Olga. Madame Sylvie responde com um forte sim e muitos safanões no corpo. Vai à sua estante e vende-lhe mais um incenso de Israel, garantindo que iria desfazer todo o mal já provocado. Acaba a consulta repetindo uma reza a São Jorge e sai do consultório. Olga paga a sessão à assistente, mal conseguindo segurar o dinheiro de tanto tremer.


Não sabe porquê, mas sente-se melhor, sente que está mais apaziguada. Tranquilizava-a o facto de ela e a mãe terem sido perdoadas. Já na rua, Olga chora. Caem-lhe lágrimas por ter sido compreendida por alguém. Desde a morte da mãe que as coisas eram difíceis. Doença prolongada. A mãe apenas lhe tinha feito uma súplica: “Não me deixes sofrer mais. Ajuda-me a morrer!”


Não poderia negar um pedido da sua própria mãe. A eutanásia era a única maneira de a aliviar de tanto sofrimento. Apesar de tudo, já não se lembra do dia em que ajudou a mãe a morrer, nem do funeral, nem do enterro. Não se lembra de nada, só do cheiro, do terrível e penetrante cheiro a morte.

 
 
 

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