Estava viciada naquela sensação – o corpo dormente, a boca salivando, o sexo aberto. E a vida já nada significava para ela, apenas o corpo lhe guiava os passos. Nenhum ser, nenhum valor, absolutamente nada controlavam o seu espírito. Descendo a calçada, ausente, apenas um pensamento: a próxima dose. Falar com o dealer habitual, encontrar um canto sujo, sacar da sua seringa, da colher, do isqueiro, do limão e do pozinho milagroso - deliciosa passagem para o céu dos condenados. Depois a espera, essa expectativa antes de Morfeu chegar e abduzi-la para outro planeta, para o submundo da felicidade cínica. Estava viciada na seringa perfurando a pele já massacrada. O seu corpo era mapa de prazer temporário, às vezes vendendo-o em troca de uma dose.
Camila vivia com a avó em Santo António dos Cavaleiros num prédio de oito andares, virado para o Loures Shopping. Chegava a casa sempre pedrada: desculpa, avó, não havia hamburgers no talho. E no dia seguinte, arranjava mais desculpas para a pobre mulher lhe dar mais dinheiro: tenho que ir às Finanças pagar uma multa; tenho que pagar o selo do carro; os meus ténis romperam-se; a Luísa, minha amiga do secundário, faz anos, preciso de dinheiro para a prenda; vou a Lisboa a uma entrevista de emprego, não tenho dinheiro para o táxi… Tantas desculpas quanto a sua mente conseguisse imaginar, e se era apanhada, conseguia sempre manipular a avó, chorava, dizia que aquela era a última vez. Mentia, mentia sempre, até ao fim, sobretudo se não havia provas. Teria sido uma brilhante advogada, não fosse ter desistido no segundo ano da licenciatura. Durante um ano inteiro enganou a avó, não pondo os pés na faculdade e usando o dinheiro em festas e droga. Estava só a divertir-me, a conhecer pessoas, avó. Não me podes impedir de viver. Já não tenho pais, agora queres matar-me de tédio? Maria da Natividade via a história da filha repetir-se no comportamento da neta. Talvez fosse esse o seu destino, ver a vida dos que amava sendo abreviada pela droga.
Depois da dose habitual, e como sempre, decidiu sentar-se no muro em frente ao Café Siripipi. Na esplanada, os bêbados do costume, trocando palavras sobre futebol e política. Um grupo de crianças brincando à sua frente. Camila, dormente, tombando sobre o muro, desabotoando a camisa, deitando-se e entregando-se a Hypnos. Um sono livre, sem recriminações, sem julgamentos. Imaginara afundando-se num marshmallow gigante, cor-de-rosa bebé. Como se estivesse sendo embalada pela deliciosa guloseima, trincando a fonte de prazer e mastigando-a devagar. Era a melhor sensação do mundo, queria viver ali para sempre. Viver sem dor, sem sofrimento, apenas prazer e felicidade. Se o Paraíso existisse, seria isto? Não queria acordar, não podia acordar para a sua vida de merda.

Acordou. Acordou? Mas não sabia onde estava. Era a casa da avó ou do dealer? Não sabia, estava escuro. Estende a mão e encontra um interruptor. Fiat Lux! Que casa era aquela? Tudo tão bonito, móveis de antiquário, soalho flutuante, decoração moderna. Não se lembrava de ter entrado nesta casa… Não se lembrava de ter vestido aquela camisa de dormir rendada, não se lembrava de nada. Levanta-se e sente-se bem, leve e enérgica, como há muito não se sentia. Caminha pela casa e dirige-se ao espelho do hall de entrada. Vê uma mulher magra, pele morena e feições perfeitas, ar saudável. Não pode ser, pensa. Esta não sou eu! A campainha toca. Atordoada, abre a porta. Um homem, mais baixo que ela, dá-lhe um beijo na boca. Camila, recuando, deixa-o entrar.
- Camila, ainda estás assim? Estás atrasada para a audiência! Vá, vai-te vestir!!! Viver perto do Campus da Justiça não te dá o direito de chegar atrasada…
- Mas, quem…
- Estás bem? Não me digas que estás doente? Queres que te faça um café?
Camila não percebe o que lhe está a acontecer. Apenas se lembra de ter adormecido no muro, nada daquilo parecia real. Tinha que acordar. Não percebia nada de tribunais, nem sequer sabia quem era aquele homem. Seria seu marido? Céus, como odiava compromissos! Só podia ser um pesadelo. Mas aquele homem insistia em fazê-la vestir, em beber o café, em levar um monte de papéis do qual desconhecia o conteúdo.
- Se estiveres confusa, pedes tempo ao Juiz e falas comigo. O ordenado que me dás não paga isto, mas tudo bem… É um investimento. O teu noivo é que não pode saber do nosso arranjinho. Ok?
Camila desce para a garagem do prédio, entra no seu BMW e é conduzida pelo assistente. Estará a sonhar? Mas, tudo aquilo parecia tão real. Seria a outra vida sonho? Talvez se adormecesse novamente, acordasse noutro sítio. Só precisava de algo que a fizesse adormecer. Precisava de encontrar o seu dealer. O telemóvel toca em videochamada. Mas, é precisamente o seu dealer…
- Amor? Olha, depois da audiência, queres almoçar comigo?
- Mas… Tu…
- Não estranhe, a dr.ª Camila hoje não está bem.
- Ok. Eu vou ter ao Campus. Amor?
- Sim.
- Não te esqueças do aniversário da tua avó…
- Amor?
- Sim?
- Amo-te.
Aquela palavra - uma droga para a sua alma. E não sabia como acordar da situação. O assistente Hélio conduzindo depressa pela avenida do Parque das Nações. Um carro em contramão, fugindo de um assalto. Camila ainda decidindo se retribuiria a declaração, querendo que o pesadelo findasse. O assistente travando e virando abruptamente para o passeio. O BMW indo contra a montra de uma loja de decoração. Camila batendo com a cabeça no airbag. Ainda viva? Fiat Lux!
Muito bom!
INTERESSANTE!!