Hoje não lhe apetecia escrever. Desistira de escrever, depois de uma hora e meia a tentar decidir que pontuação punha naquele final de parágrafo. Não valia a pena. Aliás, nada naquele momento valia a pena. Nem sabia bem porque continuava a escrever. Ser um quase anónimo pouco valorizado pela sua classe, tendo como companhia um Porto velho bebido como esponja. A bebida era a sua amante, aquela que estava sempre disponível nos momentos de prazer ou naqueles mais frágeis. Nunca o desiludia, nunca. Por isso, também já desistira de deixar de beber. Até ao meio dia já tinha bebido umas quantas cervejas para atenuar os sinais de abstinência. Também sentia que escrevia melhor sob o efeito do álcool, a sua escrita era mais livre e solta. Sem o álcool tornava-se seco e previsível.
Sabia, ou tinha o leve desejo de que quando morresse se tornaria imortal através da sua escrita, finalmente reconhecido pelo seu valor artístico. Dava-lhe nojo que tratassem os artistas como adereços de uma sociedade podre e hipócrita. Ao ponto de se tornarem fantasmas, ao ponto dos seus corpos emudecerem de tristeza.
Mas, hoje não lhe apetecia escrever. Apenas queria parar de pensar, congelar a sua mente profícua em pensamentos e lembranças. Já pensara no suicídio várias vezes… Em vez disso, bebia. Era mais tolerável, eficaz e prazeroso.
Pensava em morte, na sua morte. Imaginava-a lenta e dolorosa. Morreria de cirrose ou de cancro no fígado. Ao seu funeral viriam os seus familiares mais chegados, com quem deixara de falar há séculos; as suas ex-mulheres, para confirmar a sua morte; os seus amigos, comparsas da vida boémia e das tertúlias. O seu corpo amarelo e macerado estendido no caixão. As orelhas com sangue pisado denunciando o início da decomposição. O seu último desejo seria cumprido: ter à sua volta os seus livros para venda. E imaginava o seu funeral como um record de vendas na sua carreira artística. Apenas faltava uma pessoa, não conseguia imaginar ali o seu único filho. Já não o via há dez anos, zangara-se com ele por causa do álcool e nunca mais lhe tinha posto a vista em cima.
Cansado de pensar na sua vida e nas suas frustrações, cansado de escrever, cansado de viver e de nunca ser compreendido. Decide abrir mais uma garrafa de Porto e continua a beber. Já tinha perdido muita coisa na vida por causa da bebida, mas não encontraria melhor companhia.

Entretanto, ouve a campainha. Acha estranho, pois quase nunca recebe visitas. Abre a porta e é Laura, uma das suas ex-mulheres e mãe do seu filho. Ficam parados a olhar um para o outro, sem falar. Fernando está mais inchado e barrigudo do álcool, Laura mais magra e marcada das rugas. Laura pergunta-lhe se pode entrar, tem algo de muito importante a dizer-lhe. Fernando repara no inchaço dos olhos, vestígio de choro e de noites mal dormidas.
“Fernando, tenho que te dizer uma coisa… É difícil, sabes. Sempre tive medo que isto acontecesse, mas nunca me imaginava na situação. Nem sei como… O Mário, o nosso filho… O nosso filho morreu vítima de atropelamento. O condutor estava alcoolizado e… Ele morreu, não há nada a fazer. O corpo está em velório e o funeral é amanhã. Não sabia onde moravas e tive que telefonar para o Raúl, por isso só te avisei agora…”. Laura e Fernando abraçam-se. Velhos amantes reconhecendo os corpos e aromas. “Não acredito que tenha morrido. É tão injusto! Não pode ser!!!”, diz Fernando.
Ele dorme, pensa Fernando, dorme o último sono. O seu corpo está diferente, principalmente a face, nunca o imaginaria de barba. Na sala estão velhos amigos, os pais de Laura e outros familiares. Laura chora, Fernando pensa no tempo desperdiçado. Dez anos sem ver Mário, dez anos sem ver o seu menino. A vida sucedia-lhe à sua frente em flashes, lembrava-se de todos os erros que cometera na educação do filho, os maus exemplos que dera. Mas, tudo era inútil, por mais arrependimentos que tivesse nada poderia devolver a vida do seu filho.
Depois de tudo, chega a casa. Faz-lhe falta uma bebida, faz-lhe falta um Porto, o seu corpo já começava a dar sinais. Poderia passar a noite inteira a beber para carpir a dor da perda. Poderia aparecer amanhã no funeral completamente bêbado, a falar alto e a dizer disparates. Mas, hoje não. A bebida tinha matado o seu filho e esta seria a sua homenagem. Em vez disso, Fernando abre o computador e escreve. Desta vez sem a companhia do seu velho amigo.
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