Ossos. Fome. Muita fome. Sempre a boca tão seca. Uma pastilha de mentol para enganar o impulso. Naquele parque corria. Para sempre a sensação de que do outro lado do mundo as pessoas também corriam para equilibrar a balança do planeta. Seria delírio? Já não se espantava de nada, nem dos sonhos que deixara de ter à noite. Ficava toda a noite acordada com a sensação de uma imensa cruz sobre o seu frágil corpo. Tanto osso, pensava ela, tanto osso desperdiçado. Mas, correr para castigar o corpo culpado da maçã que comera ao pequeno-almoço.
Vê-a todos os dias da janela do seu quarto. É magra, demasiado magra, pensa. Observa-a enquanto toma o seu segundo pequeno-almoço. E ele preso naquele quarto andar sem elevador. Cento e setenta e nove quilos. Diabetes, tensão alta, falta de autoestima, tristeza. Observa-a enquanto devora um hamburger. Fora seu colega de escola. Ela era a melhor aluna, sempre bem vestida, cabelo impecável, trabalhos irrepreensíveis, perfeita. Ele o gordinho da turma, brincalhão, aluno médio, bem-disposto. No fundo sempre a desejara, sempre desejara tocar naquilo que representava a antítese da sua vida.
Sentia o corpo a ceder ao cansaço. Mas tinha que continuar, engordara desde o Natal e precisava de abater pelo menos dois quilos até ao final da semana. Correr mais, com mais velocidade. Até os músculos estalarem de dor, até os ossos esticarem na fúria do impacto. Nada mais a poderia desviar do seu foco. Ultrapassar tudo, as lágrimas que escorrem da sua face, a desilusão da semana passada, a reprovação do exame para a Ordem dos Advogados. Nunca chumbara a nada, tudo sempre lhe fora fácil de obter. E agora duas contrariedades: o noivado que acabara e o exercício da profissão que sonhara. Respirar, respirar para sobreviver mais um dia sem dormir. Já há um mês que não dorme praticamente nada. Às vezes sente-se como personagem num jogo de computador… E tem ideias absurdas: acredita que as luzes dos apartamentos vizinhos são controladas por uma elite mundial. Começa a crer estar a perder a sanidade. Correr, correr para segurar o mundo.
E continua com fome. Talvez seja de a ver assim tão magra e a correr. Abre-lhe o apetite ver aquele corpo esquelético, desprovido de formas. Mais um pacote de bolachas. Mais uma lata de coca-cola. Menos algum tempo de vida? “Não quero saber. E quem se importará comigo? Apenas os meus pais e alguns familiares, mais ninguém! Não tenho emprego, não tenho amigos, não faço nada de realmente importante na vida, apenas prolongo esta existência estúpida e sem sentido. Não passo de um gordo, preso neste corpo disforme.”
Já sem peito, sem ancas. Ossos, ossos, ossos. Nenhum apetite. Nunca percebera bem o prazer que se tinha na comida. Tinha muito mais prazer na privação, saber que podia controlar o seu peso, saber que tinha esse poder. Vira-os na cama juntos. Essa imagem não a chocara, mas o que comiam – morangos e champanhe. No que comiam podia ver-se a intensidade da paixão. O controle da sua vida estava a escapar-lhe. Correr para fugir do lamaçal em que se via soterrada. Às vezes desejava ser como aquele seu antigo colega gordo que sempre a observa da janela. Queria desejar a comida, talvez assim pudesse ser feliz, tirar prazer de algo. O corpo desfalecendo, tudo menos nítido, suores frios. Mas, correr, fugir mais.
Comendo um balde de gelado, lambuzando-se no chocolate e baunilha. Não há nada que lhe dê mais prazer na vida. Tem vinte e seis anos e apenas um objetivo: comer. O médico disse-lhe que se continuasse a engordar não iria viver para lá dos cinquenta anos. Mas, nada lhe tira o gigantesco apetite. Pelo contrário, tudo o motiva a alimentar-se de forma compulsiva. Engole calorias e emoções de forma descontrolada e aleatória.
Ela arrasta as pernas pelo corredor do parque. Ele, por sua vez, delicia-se com as pepitas de chocolate. Ela cai no chão de terra batida. Perde os sentidos ou adormece para sempre. Ele, atónito deixa cair o gelado, não sabendo o que fazer. Grita pelo seu nome: “Elisa…!” O parque está vazio. Ninguém a pode socorrer. Finalmente, Gil arranja coragem, sai de casa e desce as escadas.
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