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Foto do escritorMarta Roml

O SONHO DE NINA

Já não tinha mais veias, tinham sido queimadas pela medicação fortíssima que recebera. Mesmo assim continuavam a picá-la à procura de mais veias. Ela virava a cabeça e fazia uns trejeitos na cara, sinal do cansaço que sentia, não da dor. Já tinha sofrido tanto que tudo o que lhe pudessem fazer não se comparava ao que já sofrera. Já tinha sido cortada em tantos sítios, cortada, cosida, picada, como se se tratasse de um pedaço de carne perdido num talho de segunda.


Sentia-se abandonada, abandonada numa cama de hospital, sem poder receber visitas por causa da pandemia. As lágrimas caiam-lhe pela face, e por vezes entrava em choro convulsivo. Não se lembrava de nada do acidente, de absolutamente nada. Disseram-lhe posteriormente que um carro se tinha despistado, que chocara com o seu e que ela tinha sofrido tantas fraturas que não sabiam como tinha sobrevivido. E, às vezes, desejava não ter sobrevivido. Fechava os olhos e pedia a Deus que a levasse depressa dali, pedia por uma morte rápida.


“Respire…”, dizia-lhe o enfermeiro antes de a picar. E ela já sabia que depois disso vinha aquela sensação terrível, aquela picada que a fazia querer desaparecer da face da Terra. Mais um cateter, mais o suplício de ver um acesso a rebentar passadas umas horas… Dali a pouco tempo ia ser operada novamente à coluna. Nina não sabia se iria aguentar mais uma operação. Não sabia se iria aguentar mais dores, mais cicatrizes que não fechavam, bactérias e o diabo a sete. Estava cansada de tudo, daquela vida e da outra... Até porque nunca fora muito feliz. Tinha trinta e cinco anos e ainda não realizara os seus sonhos. Sonhava em ter uma família, em ter um bando de filhos a correr atrás dela. Mas nada disso acontecera e agora muito mais difícil seria.


Ninguém a podia visitar. Ninguém. Nem sequer tinha um telemóvel para contactar os seus amigos e familiares. As lágrimas a escorrerem-lhe da face. Já lhe tinham feito quase tudo. Sentia que perdera toda a dignidade. Nem podia ir à casa de banho, provavelmente iria ficar incontinente para toda a vida. Nina algaliada e a defecar numa fralda. Nem aguentava fazer as suas necessidades numa arrastadeira devido às fraturas na coluna.



Tanto azar, tanto azar, tanta merda a acontecer-lhe na porra da sua vida. Nina não se conformava com o acidente e continuava a chorar. Passava os dias ali, naquela cama, quase sempre a chorar. E agora, aproximava-se o momento em que era levada para o bloco operatório. Estava nervosa. Desta vez não iria levar anestesia geral, seria só epidural. Lembrava-se dos pais, dos irmãos, da família toda, dos seus amores falhados, dos inimigos que colecionava pela sua personalidade forte. Era uma mulher de convicções, por isso fora para a política, por ainda acreditar na humanidade, que é possível acreditar numa mudança. Mas, também sabia que era muito difícil esse mundo, havia muito teatro no parlamento. E Nina nunca se adaptara aos jogos sujos da vida de deputada.


Um automóvel que lhe dilacerara o corpo. Como é que em segundos tudo se desmorona. A vida é mesmo uma merda, pensava Nina. Tantas fraturas… Não sabia se iria voltar a andar, se se voltaria a erguer e a conseguir ser independente. Já estava naquele hospital há quase dois meses, e ainda chorava. Às vezes sentia que tudo aquilo era apenas um pesadelo, não queria acreditar no que lhe acontecera.


Entretanto, fora levada para o bloco operatório e aguardava a toma da epidural. Os médicos já a conheciam bem, já a tinham operado mais cinco vezes. Aquela sala era fria, gelada. Para além da epidural, iam-lhe dar medicação para se manter calma durante a operação. Entretanto, a epidural começa a fazer efeito, e a medicação também. Nina está consciente, demasiado consciente. Ouve todas as conversas, sente que lhe estão a mexer e imagina o corte do bisturi. Não aguenta mais. Não aguenta. E começa a cantar para distrair a sua atenção da cirurgia. Canta para calar os pensamentos. Nina canta imaginando-se num musical. Na verdade, teria sido esse o seu desejo, ser atriz de musicais, mas nunca tentou a sorte, sempre achou ser um sonho demasiado lírico. Durante duas horas realiza o seu mais profundo sonho e é aplaudida por uma plateia entusiasmada.

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