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PERSEGUIDOS

Foto do escritor: Marta RomlMarta Roml

Atualizado: 1 de abr. de 2023

Felisberta estava outra vez ali. Ali, naquele sítio. Ali. Outra vez. Não podia ser. Não se lembrava de absolutamente nada do dia anterior. Não se lembrava dos imensos comprimidos que tinha ingerido com vodka. Nem sequer da discussão que tivera com o marido. Não se lembrava de ter atirado todo o seu serviço de loiça ao chão e de ter despejado o enorme tacho de sopa na cabeça do marido. Também não se lembrava de se ter fechado à chave no quarto a cantar, a saltar e a dizer que o fim do mundo estava próximo.


Ali. Outra vez ali. Reconhecera a arquitetura clássica do edifício. Naquele corredor gelado é recebida por alguns doentes:


- Porque é que estás aqui?

- Não sei. Não me lembro…

- Lembras-te do teu nome?

- Lembro-me. Chamo-me Felisberta. E tu?

- Podes chamar-me Black!

- Eu sou o Urso!!!

- Pedro Afonso Domingos Silva.

- E vocês, porque é que estão aqui?

- Pelo mesmo motivo que tu, Felisberta!

- Estamos todos aqui pela mesma razão.

- Estamos a ser vigiados! Fazemos parte de uma experiência sociológica. Somos constantemente perseguidos por câmaras e drones.

- Os nossos telemóveis estão sob escuta…

- Somos perseguidos!

- PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!!


Começam todos a gritar desenfreadamente, ao mesmo tempo que batem com os pés no chão. O enfermeiro Diogo já estava habituado àquelas cenas no hospital. Manda-os calar a todos, fazendo uma das suas carantonhas. Felisberta começa a chorar, assustada. O enfermeiro, em tom de gozo, imita-a, empurrando-a pelo corredor fora. Sem saber como reagir, para de chorar, ficando em estado de choque com a atitude do enfermeiro.



Só poderia ter sido o marido a interná-la, só poderia ter sido ele a levá-la à loucura, pensa. Felisberta dirige-se ao gabinete médico: tem direito a, pelo menos, um telefonema. Os dois médicos e funcionários riem-se de Felisberta. Estão na pausa do café e sem paciência para exigências.


- Agora o que tu tens direito é ao lanche! E já é muito bom, depois do que fizeste…

- É precisamente isso que eu queria saber… O que é que aconteceu? Eu não me lembro de nada!!!

- Olha, a maluca, não se lembra de nada…. Estás bonita, estás! Tentaste matar-te, percebeste? Tentaste matar-te, outra vez!

- O quê?

- Sim, e antes disso também agrediste o teu marido.

- Compreendo. Mas, posso fazer o meu telefonema?


Todos se riem, dizendo-lhe para ir lanchar. Felisberta não tem fome, de qualquer forma, entra na sala de refeições. Senta-se ao lado de Black, uma mulher muito morena e magra. Black come muito depressa, contrastando com Felisberta que brinca com o pão. Uma funcionária obesa e bexigosa aproxima-se de Felisberta para lhe dar a medicação.


- O que é que é isso que me está a dar?

- Ordens médicas.

- Não tomes, Felisberta! Isso destrói-te o pensamento!

- Vá, seja boazinha e tome lá este comprimidinho…


Felisberta engole o comprimido e a funcionária pede-lhe que mostre a língua. Depois do lanche, retorna ao gabinete médico. Pede, mais uma vez, para fazer um telefonema. Finalmente cedem. Uma médica loira e gélida manda-a entrar no gabinete contíguo. Felisberta está desesperada, mas lembra-se do número de telemóvel do marido e da mãe. Decide telefonar à mãe, começando a emocionar-se ao digitar o número. A médica desliga o telefone, dizendo-lhe: “Se continua a chorar não vai falar com ninguém!”. Felisberta tenta controlar-se e digita novamente o número.


- Mãe? Sou eu, Felisberta!

- Felisberta … O que é que te aconteceu, minha querida…? O Marco contou-me que tomaste muitos comprimidos e que o agrediste… Ai, minha filha, o que é que podemos fazer?

- Mãe, eu estou presa aqui. Só queria que me viessem buscar. Quero sair daqui!

- Mas, agora o melhor é estares aí para tratar da tua doença…

- Não percebes, mãe! Foi o Marco que me provocou. Ele levou-me à loucura com as manias dele, com os ciúmes e exigências…

- Felisberta, o melhor é permaneceres aí até ganhares estabilidade…


E despediu-se da mãe aos soluços. Sai do gabinete indo para um dos salões do hospital. Ali estão todos os doentes até à hora do jantar. Felisberta senta-se numa das poltronas. A seu lado está Urso.


- És muito bonita, Felisberta. O que é que uma moça tão bonita está a fazer aqui?

- Eu? Bonita? Não me lembro de nada e também não me apetece falar sobre isso. E tu?

- Eu sou da Amareleja e pedi para ser internado. Fui à polícia. Pedi, foi. Pedi porque ia matar um homem. Um vizinho meu. Mas, és mesmo bonita, Felisberta!

- Obrigada. Sou casada…

- Ah, e és cega, também… Eu até sou jeitoso. E sou da Amareleja… Sim, sou…


Entretanto, Felisberta adormece. Dorme profundamente por causa da medicação. Sonha com o marido a persegui-la com uma panela de sopa nas mãos. Sonha com o pai a bater-lhe no rabo. Felisberta acorda sobressaltada com as palmas do enfermeiro Diogo. É a hora do jantar. Janta-se cedo ali, às 18h30. Felisberta continua sem fome, mas é das primeiras a entrar na sala de refeições. O menu é sopa, peixe assado e gelatina. Felisberta senta-se e a seu lado senta-se, também, Pedro. Perante aquela comida, começam todos a torcer o nariz…


- Não queremos esta merda!

- Queremos comer decentemente!!!

- É para isto que pagamos impostos, é?

- O meu nome é Pedro Afonso Domingos Silva. E o teu é Felisberta… Felisberta quê?

- NÃO QUEREMOS ESTA BOSTA!!!

- O meu nome é Felisberta Lobo …

- Peixe assado? Foda-se! Mas, onde é que está o peixe? Isto é só espinhas…

- Gosto de ti, Felisberta. Gosto de ti, mas não gosto da comida daqui. Posso dar-te um beijo?

- Sou casada…

- Eu também era e agora já não sou. Não queres um beijo?

- Não, não quero.

- Porquê?

- Porque não.

- Vá lá, só um…

- Não quero beijos, não quero homens, não quero nada! Só quero que me deixem em paz, ouviram? Eu não estou doente, estou cansada de tudo! Cansada da humanidade e da desumanidade…Cansada da forma como as pessoas se tratam umas às outras! Falta de sensibilidade… Já ninguém escuta realmente ninguém! Estou cansada! Se não sabem ajudar, ao menos deixem-me em paz…!

- Sim, deixem-nos em paz!

- Não queremos esta bosta!

- Não me toquem… Andam a perseguir-me, é?

- A senhora controle-se… Senão teremos que a medicar…

- Não me toquem! Porque é que me andam a perseguir? O senhor enfermeiro tire as patas de cima de mim! Isso é inconstitucional! Eu sei os meus direitos!

- PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!!

- Calem-se!!! Mas que merda é esta?

- Quer guerra? Quer guerra? O problema são os escroques como o senhor! Nem devia ser enfermeiro!

- PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!!

- Esteja quietinha e não me ameace, senão é pior…

- Estou cansada de vermes como o senhor! Insurjam-se! Insurjam-se!

- PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!! PER-SE-GUI-DOS!!!



 
 
 

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