Setenta e dois milhões de anos, ouvi eu dizer na rádio. Nem consigo imaginar a magnitude desse número na linha temporal da minha existência insignificante. Tenho vinte e oito anos, mas não me sinto completamente adulta. Devo ser como o vulcão que hoje de manhã ouvi rugir levemente: ambos estamos a acordar para o mundo. Passei o dia a ouvir notícias, um pouco preocupada. Porém, não tenho medo de morrer. Nunca tive medo de morrer. E se me perguntassem do que é que tenho medo, diria que da solidão. Sei que foi isso que destruiu o meu irmão. Por isso, invento mil e uma razões para sair de casa, mesmo que nos dias de hoje o ser humano praticamente não tenha necessidade de sair. Desde as sucessivas pandemias do início do século XXI que, gradualmente, fomo-nos recolhendo ao conforto dos nossos lares. E com a revolução tecnológica, os robots foram passando a desempenhar as funções de construção, fabrico e transporte de todo o tipo de objetos e materiais.
Saio de casa, vejo as ruas vazias. Ao fundo, o castelo. Sempre o castelo para me demonstrar que o tempo da minha vida é minúscula partícula pousando na crosta terrestre. Apanho um táxi e ponho-me à conversa com o operador de inteligência artificial. Conversamos sobre o vulcão. Durante cerca de setenta milhões de anos o vulcão esteve adormecido. Situa-se na Serra do Socorro, sabia? E a serra foi formada pela lava que atravessou calcários com mais de noventa milhões de anos. Conhece as Termas dos Cucos? Há muitos, muitos anos era frequentada pelas suas propriedades curativas no caso de reumatismo, afeções ginecológicas e dermatoses. As lamas medicinais dos Cucos são, segundo a classificação internacional adotada, lamas cloretadas radioativas, hipertermais, contendo biogeleias… Deixei o operador a falar sozinho. Não havia outro assunto de conversa, até os robots estavam contaminados com este pânico de finitude.
Saio em frente das ruínas da estação de comboio. Mais de um século a prometer a modernização da linha do Oeste e nada. A tecnologia poderia mudar quase tudo, mas há coisas que permanecem imutáveis. Outro tremor. Eu, sem temor, apenas ânsia de ver o circo a arder. Atravesso a Rua 5 de Outubro sem ver ninguém, só autómatos a circularem pelos passeios. Alguns levam cães, outros apenas caminham com embrulhos.
Despedi-me do meu anterior emprego depois da morte do meu irmão. Agora trabalho como “Gestora de Operadores Autómatos”. Isso obriga-me a sair de casa quase todos os dias. Ficar em casa seria entregar-me à loucura, à saudade e às memórias dolorosas. Outro tremor. Não se vê vivalma. Será que as pessoas não percebem o que está prestes a acontecer? Nem fugir conseguem? Atravesso o Jardim da Graça e entro na igreja. Não sei rezar, os meus pais não eram crentes, porém ajoelho-me, pedindo que minha morte seja rápida, se o vulcão eclodir.
Saio e sento-me num dos bancos do jardim, observando as pombas no chão. Quero admirar a natureza, mas os meus olhos não se fixam muito tempo nos pequenos voadores. Em vez disso, ponho-me a ver notícias no painel digital, contíguo ao banco. Hoje é vinte cinco de Abril, diz o pivot artificial. Em Torres Vedras o vulcão, após milhões de anos adormecido, voltou a estar ativo. Nas redes sociais as pessoas mostram-se em pânico, sem saber o que fazer. O período de inatividade de um vulcão pode ser influenciado por fatores como composição do magma, o tipo de atividade geotérmica na região, a presença de placas tectónicas e a história eruptiva do vulcão…
Novo tremor interrompe o meu descanso. Um cheiro a dióxido de enxofre invade as minhas narinas. E outro tremor. Permaneço sentada. Começo a ver gente na rua. Gente real. Pessoas de fato treino ou pijama, de olhos esbugalhados e pele lívida. Há crianças a chorar e velhos a sorrir. Quem sabe o que lhes passará pela mente?
A cidade está seriamente ameaçada. Se estiver dentro de casa, saia e apanhe um táxi para outro sítio. Para segurança de todos a luz e o gás serão cortados. Não fale com estranhos, poderá ser alvo de assalto ou abuso. O ser humano é imprevisível. Mantenha-se calmo e caso tenha um ataque de pânico, faça sequências de respirações. Poderá sempre utilizar a linha saúde para o acompanhar.
Levanto-me a custo, a frequência dos tremores aumentou. Fumo, muito fumo. Ou talvez nevoeiro? Olho para os meus pés e sinto a fragilidade do meu corpo. Olho para o obelisco e vejo-o a ruir na direção do velho hotel. Do pequeno tanque escorre água. Sinto a terra a fugir-me, uma enorme racha separando-me o pé direito do esquerdo. Ao contrário das outras pessoas, caminho devagar em direção à igreja de S. João. Caminho em direção ao cemitério. Quero ver Sebastião pela última vez. Depois posso descansar.
Abraçada à campa de meu irmão, oiço os avisos das colunas de som municipais: Aconselhamos a que se afaste da cidade o mais depressa possível. Se a lava não atingir o local onde está, os gases libertados pelo vulcão serão fatais. E ao longe, talvez do rádio de um automóvel, ouve-se a antiga canção: “E depois do adeus, e depois de nós…” Afaste-se e mantenha-se calmo. Proteja as crianças e os idosos. Leve máscara, a sua imunidade poderá estar comprometida pelo tempo de isolamento. “O adeus, o ficarmos sós…”.
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